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Você sabia que é possível ser considerado autor de um crime mesmo sem praticá-lo diretamente? A autoria mediata no Direito Penal trata justamente dessa situação, em que o agente utiliza outra pessoa como instrumento para executar uma conduta criminosa.
Esse tipo de autoria está diretamente ligado à ideia de domínio do fato e tem grande relevância nos casos que envolvem o uso de inimputáveis, pessoas coagidas ou que agem em obediência cega a ordens superiores.
Neste artigo, vamos analisar a fundo o que caracteriza a autoria mediata, quais são seus fundamentos doutrinários e legais, os exemplos práticos mais recorrentes e as principais implicações para o processo penal.
O que é Autoria Mediata no Direito Penal
A autoria mediata ocorre quando o agente não executa pessoalmente a conduta típica, mas se vale de uma terceira pessoa como instrumento para a realização do crime.
Assim, diferente do partícipe ou do coautor, o autor mediato domina a ação penal por intermédio de outrem, que age sem culpabilidade, por incapacidade, coação ou outro fator limitador da responsabilidade penal.
O autor mediato é, portanto, quem controla o ato delituoso à distância, sem que precise tocar diretamente na execução. Essa estrutura rompe com a visão tradicional da autoria como sinônimo de execução física e traz um novo paradigma: o controle sobre o fato típico é mais relevante do que a execução material.
Base Legal e Doutrinária da Autoria Mediata
Embora o Código Penal não trate expressamente da autoria mediata, ela é amparada pelo art. 29, que dispõe:
“Quem, de qualquer modo, concorre para o crime, incide nas penas a este cominadas, na medida da sua culpabilidade.”
O texto legal não diferencia autor imediato, mediato ou partícipe, deixando essa análise para a doutrina penal, que se encarrega de construir critérios interpretativos para a aplicação correta da norma.
Doutrinadores Relevantes
Cezar Bittencourt explica que a autoria mediata é caracterizada pela instrumentalização de outrem. O autor mediato atua como se o executor fosse uma extensão de sua vontade.
Cleber Masson observa que a responsabilidade penal do autor mediato depende da ausência de culpabilidade do executor e do domínio da ação pelo agente que a ordena.
Rogério Sanches Cunha reforça que só há autoria mediata se o executor não puder ser responsabilizado criminalmente, seja por coação moral irresistível, inimputabilidade ou outro fator.
Teoria do Domínio do Fato: A Base da Autoria Mediata
A teoria do domínio do fato é o alicerce da autoria mediata. Formulada pelo penalista alemão Hans Welzel, essa teoria afirma que autor é aquele que detém o controle final sobre o curso da ação típica.
Assim, o autor não precisa executar pessoalmente o crime, desde que tenha o poder de determinar sua realização, continuação ou cessação.
Comparação com Outras Teorias
Teoria formal-objetiva: considera autor quem pratica o verbo típico. Não contempla bem a autoria mediata.
Teoria material-objetiva: foca nos efeitos da conduta, mas também falha ao não reconhecer o controle por trás da ação.
Teoria do domínio do fato: resolve esse impasse ao permitir a responsabilização do agente que controla a execução mesmo sem contato físico com o crime.
A jurisprudência brasileira adota majoritariamente essa teoria, reconhecendo o autor mediato como responsável sempre que comprovar-se o controle consciente da ação por meio de outra pessoa.
Situações Típicas de Autoria Mediata
A autoria mediata no Direito Penal se caracteriza pela atuação indireta do autor, que utiliza outra pessoa como instrumento da ação criminosa. Para que essa forma de autoria seja reconhecida, é imprescindível que o executor não possua culpabilidade penal, seja por incapacidade jurídica, erro, coação ou contexto especial de dominação.
Neste sentido, a doutrina moderna e a jurisprudência consolidaram uma série de hipóteses clássicas que configuram autoria mediata, todas pautadas pelo critério do domínio do fato e pela instrumentalização do executor:
1. Inimputabilidade do Executor
O agente se vale de uma pessoa incapaz de compreender o caráter ilícito do fato, como um menor de idade, pessoa com transtorno mental ou embriaguez completa involuntária.
Exemplo: Um adulto convence uma criança de 11 anos a furtar objetos de uma loja. A criança não pode ser responsabilizada penalmente, e o adulto responde como autor mediato do furto.
2. Coação Moral Irresistível
Ocorre quando o executor comete o crime sob ameaça grave e inevitável, que suprime sua liberdade de vontade. Nessa hipótese, a coação funciona como uma causa de exclusão da culpabilidade.
Exemplo: Um criminoso ameaça de morte a família de um cidadão caso ele pratique um roubo. O verdadeiro autor do crime é o agente que fez a ameaça, não o executor coagido.
3. Obediência Hierárquica de Ordem Não Manifestamente Ilegal
Situações em que o executor cumpre ordem superior, sem ter plena ciência da ilegalidade do ato. A ordem deve ser ambígua ou de legalidade duvidosa, não sendo manifestamente criminosa.
Exemplo: Em um contexto militar, um superior ordena a destruição de uma propriedade civil alegando necessidade estratégica. Se a ordem for ambígua, o executor pode ser considerado mero instrumento, e o superior, autor mediato.
4. Erro de Proibição Inevitável
Quando o executor comete o crime acreditando, de forma legítima e inevitável, que sua conduta é lícita. Isso exclui a culpabilidade, desde que o erro não pudesse ser evitado com o conhecimento ordinário.
Exemplo: Um religioso induz seu seguidor a praticar sacrifício animal, convencendo-o de que a prática é autorizada por lei. O seguidor age em erro de proibição inevitável, e o líder será responsabilizado como autor mediato.
5. Erro de Tipo Provocado por Terceiro
Ocorre quando o executor é levado ao erro sobre um elemento do tipo penal, induzido intencionalmente por outra pessoa. Esse erro, quando essencial e excluente do dolo, torna o executor inimputável em relação à conduta típica.
Exemplo: Uma pessoa entrega uma encomenda lacrada com drogas a um terceiro, dizendo que se trata de remédio legal. O terceiro é enganado e transporta a substância. O autor mediato será aquele que induziu o erro de tipo.
6. Ação Justificada do Executor
Quando o executor pratica um fato típico amparado por uma causa de justificação, como legítima defesa, estado de necessidade ou estrito cumprimento do dever legal. Neste cenário, o autor mediato se aproveita da situação para manipular o resultado típico sem responsabilidade direta do executor.
Exemplo: Um policial ordena a outro que dispare contra alguém, alegando que a vítima está armada e prestes a atirar. Se ficar comprovado que a vítima não representava risco real, o executor poderá estar em legítima defesa putativa, e o superior será responsabilizado como autor mediato.
7. Autoria de Escritório ou Aparatos Organizados de Poder
Essa é uma construção teórica que ganhou destaque com o jurista Claus Roxin. Nela, o autor mediato atua em estruturas rígidas e burocratizadas (como regimes totalitários ou organizações criminosas), controlando o aparato sem executar diretamente os atos ilícitos.
Assim, a responsabilização ocorre porque o autor exerce domínio funcional sobre o sistema e tem poder de comando sobre os executores.
Exemplo: Em uma ditadura, o chefe de segurança do Estado ordena torturas e execuções através de subordinados, protegendo-se com o anonimato institucional. Mesmo sem atuar fisicamente, ele é autor mediato de crimes contra os direitos humanos, pois controla os meios e os agentes executores.
Resumo das Hipóteses de Autoria Mediata
Situação | Fundamento da Inimputabilidade do Executor | Responsável Penal |
---|---|---|
Inimputável (menor, doente mental) | Ausência de capacidade penal | Autor mediato |
Coação moral irresistível | Supressão da liberdade de vontade | Autor mediato |
Ordem hierárquica ambígua | Obediência sem consciência plena da ilicitude | Autor mediato |
Erro de proibição inevitável | Desconhecimento legítimo e não culposo | Autor mediato |
Erro de tipo provocado | Engano essencial induzido por outro | Autor mediato |
Ação justificada (ex: legítima defesa) | Conduta coberta por excludente de ilicitude | Autor mediato |
Estrutura de poder organizada | Controle sobre sistema e executores | Autor mediato |
Exemplos Práticos da Autoria Mediata no Direito Penal
Na prática forense brasileira, a autoria mediata no Direito Penal tem sido cada vez mais reconhecida como instrumento eficaz para responsabilizar agentes que, embora não executem diretamente o crime, detêm pleno controle da conduta criminosa por meio de outra pessoa.
Portanto, esses casos são especialmente recorrentes em situações que envolvem manipulação, hierarquia, influência psicológica ou aproveitamento da incapacidade jurídica de terceiros.
A seguir, destacam-se exemplos ilustrativos, amplamente debatidos pela doutrina e pela jurisprudência:
1. Uso de Adolescente para Tráfico de Drogas
Um dos exemplos mais emblemáticos de autoria mediata é o caso em que um adulto utiliza um adolescente para transportar, guardar ou vender drogas ilícitas.
O menor, por ser inimputável, não responde criminalmente como autor pleno. No entanto, o adulto, ao instrumentalizá-lo, exerce o domínio do fato e responde integralmente pelo crime, na condição de autor mediato de tráfico de drogas (art. 33 da Lei 11.343/2006).
📌 Esse exemplo revela como o autor mediato se vale da vulnerabilidade legal do executor para tentar escapar da responsabilização, estratégia que é neutralizada pela aplicação correta da teoria do domínio do fato.
2. Chefes de Organizações Criminosas
Em estruturas criminosas organizadas — como facções, milícias ou redes de corrupção — é comum que os líderes não participem fisicamente da execução dos delitos, mas emitam ordens a subordinados para prática de homicídios, extorsões, tráfico ou sequestros.
Assim, o chefe que controla a atuação de seus subordinados e se vale da estrutura da organização é responsabilizado como autor mediato, especialmente quando os executores agem sob medo, obediência ou dependência.
📌 Trata-se da aplicação prática da teoria da autoria de aparato organizado de poder, desenvolvida por Claus Roxin, especialmente relevante em contextos de criminalidade complexa e hierarquizada.
3. Delegação Irregular de Atos Médicos
Imagine um médico que, mesmo sabendo da falta de habilitação de seu auxiliar, delega a ele a realização de procedimentos invasivos ou prescrição de medicamentos, causando danos ao paciente.
Caso o auxiliar não possua discernimento técnico adequado, a responsabilidade penal recairá sobre o médico, autor mediato do resultado lesivo ou letal, por instrumentalizar alguém sem preparo para a conduta típica.
📌 Aqui, o agente responde com base na posição de domínio técnico e jurídico sobre a situação, bem como pela consciência da incapacidade do executor.
4. Manipulação Religiosa para Prática de Crimes
Em casos que envolvem autoridade espiritual ou religiosa, há situações em que líderes influenciam emocionalmente seus seguidores a cometer crimes, alegando ordens divinas ou justificativas espirituais.
Quando o seguidor atua em estado de erro de proibição inevitável ou com discernimento reduzido, e fica evidente que o líder exercia total domínio da ação, este poderá ser responsabilizado como autor mediato do crime cometido.
📌 Essa hipótese tem sido debatida em crimes de homicídio, lesão corporal ou atentados a valores morais, especialmente em seitas fechadas ou com doutrinas radicais.
Críticas e Limites da Autoria Mediata
Apesar de sua relevância, a autoria mediata enfrenta críticas importantes:
Risco de abuso na imputação penal: atribuir autoria a alguém com base apenas em indícios frágeis pode ferir o devido processo legal.
Necessidade de provas objetivas do domínio da ação: sem isso, há risco de responsabilização injusta.
Casos de autoria intelectual ou indireta: quando o agente apenas sugere ideias, sem comando efetivo, não há autoria mediata.
A doutrina alerta para a importância da cautela na aplicação da autoria mediata, especialmente em contextos de lideranças políticas, religiosas ou empresariais.
Jurisprudência Aplicada à Autoria Mediata
A autoria mediata representa um tema complexo e sensível no Direito Penal, especialmente quando envolve o uso de terceiros como instrumentos na execução de crimes.
A seguir, são apresentados alguns julgados que ilustram como o Poder Judiciário brasileiro reconhece e trata a autoria mediata em diferentes contextos criminais.
1. AP 481 (STF) – Caso “Mensalão” e o Controle do Fato
Neste julgamento histórico, o Supremo Tribunal Federal reafirmou a aplicação da teoria do domínio do fato para configurar a autoria mediata. A Corte entendeu que o réu, ainda que não tivesse praticado diretamente a conduta típica, era quem detinha o controle final da ação criminosa, por meio do comando funcional da estrutura envolvida.
A responsabilização penal foi atribuída com base na capacidade de decisão e de comando sobre os executores, o que configura a essência da autoria mediata.
2. Pet 3.898 (STF) – Conduta em Organização Estruturada
A questão envolvia a divulgação de dados sigilosos por agente com acesso privilegiado à informação, utilizado por outro com maior grau hierárquico como meio para atingir um fim ilícito.
Ainda que a autoria direta da revelação fosse de um servidor público, o STF analisou a responsabilidade de quem determinou e instrumentalizou essa conduta.
O julgamento ressalta que, mesmo sem ação física, o domínio da vontade alheia, nos moldes da autoria mediata, pode configurar responsabilidade penal do instigador da prática delitiva.
3. Inq 4954 (STF) – Obstrução de Justiça e Domínio da Vontade
Neste inquérito envolvendo homicídios qualificados e organização criminosa, foi reconhecida a presença de indícios de autoria mediata contra agentes públicos de alto escalão, que teriam ordenado os crimes.
O STF destacou a prática reiterada de obstrução de investigações e o controle sobre subordinados como elementos suficientes para a configuração da autoria mediata. A decisão reforça a responsabilização penal de quem, mesmo sem executar o ato diretamente, domina os meios e o resultado da ação criminosa.
4. RMS 62.143 (STJ) – Investigação com Foco em Autoria Mediata
O caso, relacionado ao assassinato de uma vereadora do Rio de Janeiro, envolveu medida judicial de quebra de sigilo digital com base na complexidade da apuração de autoria mediata.
A decisão reconheceu que o objetivo era identificar aqueles que, não diretamente envolvidos na execução, poderiam ter arquitetado ou determinado o crime.
O STJ entendeu como legítima a atuação judicial para descobrir autores mediatos, ressaltando a importância da investigação aprofundada para atingir os verdadeiros responsáveis, ainda que não figurem como executores.
5. AGRHC 613729 (STJ) – Domínio da Vontade e Responsabilização por Falta Grave
Neste acórdão, o STJ confirmou a responsabilização do apenado como autor mediato por haver idealizado uma infração disciplinar dentro do presídio. A Corte entendeu que, embora o agente não tenha praticado o ato diretamente, foi ele quem determinou a ação da visitante que transportava droga, sendo ela mero instrumento.
O julgamento reforça que não se trata de responsabilização objetiva por ato de terceiro, mas sim da aplicação legítima do conceito de autoria mediata.
6. ROMS 66734 (STJ) – Indícios de Autoria Mediata como Justa Causa
O STJ anulou decisão que homologava o arquivamento de inquérito, entendendo que havia indícios suficientes de autoria mediata e imediata.
A Corte considerou que, uma vez comprovada a materialidade e presentes indícios consistentes de domínio da vontade alheia, há justa causa para o prosseguimento da persecução penal.
A acusação mútua entre os investigados não é suficiente para afastar o dever do Estado de investigar, garantindo à vítima o devido acesso à Justiça.
7. HC 598155 (STJ) – Coautoria e Domínio Funcional da Ação
Embora a decisão tenha reconhecido a inviabilidade do habeas corpus para revisão da condenação, o julgamento destaca que o autor pode ser responsabilizado quando exerce o domínio funcional do fato, mesmo sem executar diretamente a conduta típica.
O STJ reafirmou que a teoria monista adotada no Código Penal não exclui a responsabilização do autor mediato, desde que ele atue com domínio sobre o plano e os desdobramentos do crime, ainda que a execução ocorra por terceiros.
8. AGRESP 1985426 (STJ) – Rejeição de Tese de Autoria Mediata por Ausência de Prequestionamento
Neste agravo, o STJ não conheceu da tese de autoria mediata por ausência de debate na instância inferior. O Tribunal destacou que, embora a defesa alegasse uso de documento falso por terceiro sob orientação do recorrente, a questão não havia sido enfrentada no julgamento anterior, o que impediu sua análise no recurso especial.
O caso reforça a importância do prequestionamento para que se examine a tese de autoria mediata no âmbito dos tribunais superiores.
9. AGRHC 613729 (STJ) – Deliberação de Denúncia e Indícios de Autoria Mediata
Neste agravo regimental, o STJ entendeu que a existência de indícios de autoria mediata — mesmo que pendentes de confirmação na instrução criminal — não inviabiliza o recebimento da denúncia.
O acórdão destacou que o domínio do fato, ainda que debatido, pode ser aferido posteriormente, sendo suficiente, para esta fase processual, a narrativa que fundamente a utilização de terceiros como instrumentos para a prática delitiva.
10. ROMS 66734 (STJ) – Comando à Distância e Responsabilidade Penal
O STJ reafirmou que a coautoria e a autoria mediata não se excluem, principalmente em contextos de organização criminosa. No julgamento, ficou evidenciado que o agente exerceu comando à distância, determinando a execução de atos criminosos praticados por outros membros da estrutura delitiva.
A Corte reforçou que o agente que planeja, orienta e domina a execução por meio de outrem pode ser responsabilizado como autor mediato.
11. HC 598155 (STJ) – Mandante e Inimputabilidade do Executor
Neste habeas corpus, foi discutida a imputação de homicídio ao suposto mandante que teria se valido de um executor inimputável. A Corte ressaltou que, para caracterizar a autoria mediata, é indispensável comprovar o domínio da vontade e o uso consciente do executor como instrumento.
O caso evidenciou que não basta a acusação de mando, sendo necessária a verificação de elementos concretos que revelem o controle da ação criminosa.
12. AGRESP 1985426 (STJ) – Mandante de Crime e Não Comunicação de Qualificadora
O julgamento analisou a incidência da qualificadora de promessa de recompensa sobre o autor mediato. O STJ entendeu que essa circunstância subjetiva, ligada ao executor do crime, não se comunica ao mandante.
O acórdão reforça o princípio da individualização da pena, reconhecendo que, embora o autor mediato seja penalmente responsável, não pode receber qualificadoras que digam respeito exclusivamente à motivação do executor direto do crime.
13. Habeas Corpus 104.410/DF
“A responsabilização do autor mediato exige a comprovação de que ele detinha o domínio final da ação, mesmo que não tenha executado diretamente a conduta típica.”
O Supremo Tribunal Federal, ao julgar esse caso, deixou claro que a autoria mediata depende de prova sólida do vínculo de dominação sobre o executor, ou seja, que o autor mediato tinha poder de decisão sobre o início, o modo e o fim da ação criminosa.
Este entendimento é crucial para evitar imputações penais genéricas ou excessivamente abrangentes, principalmente em contextos de estruturas hierárquicas, como organizações criminosas, ambientes institucionais ou relações de autoridade.
14. Habeas Corpus 528.456/PR
“Caracteriza-se a autoria mediata quando o agente, de forma consciente e voluntária, se vale de terceiro sem culpabilidade para a realização do tipo penal.”
Este julgado reforça os elementos estruturais da autoria mediata:
A instrumentalização consciente de outro ser humano;
A inexistência de responsabilidade penal do executor (por ser inimputável, coagido, induzido ao erro etc.).
A decisão também reafirma que a autoria mediata não pode ser confundida com coautoria ou participação, pois nela há um controle funcional e unilateral da conduta típica.
Implicações Processuais da Autoria Mediata
A imputação por autoria mediata no processo penal exige rigor técnico e probatório redobrado, justamente por não se tratar de uma conduta visível ou diretamente perceptível. O autor mediato age nos bastidores da execução e, por isso, a responsabilização não pode se basear em meras presunções.
Abaixo, detalham-se os principais aspectos processuais envolvidos na correta aplicação do instituto:
Prova da Instrumentalização
Para que o autor mediato seja responsabilizado, é imprescindível comprovar que ele efetivamente utilizou o executor como instrumento humano, controlando sua ação.
Meios de prova possíveis
Mensagens de texto, e-mails, áudios ou bilhetes que demonstrem ordens ou indução.
Depoimentos de testemunhas que evidenciem a relação de domínio, medo, subordinação ou manipulação.
Comportamento reiterado de comando, próprio de quem exerce controle contínuo sobre o executor.
Essa etapa é importante para afastar alegações de mera participação ou coincidência e para delimitar o nexo de causalidade entre a ordem e o crime praticado.
Prova da Incapacidade do Executor
Além da prova do comando, é necessário demonstrar que o executor não poderia responder penalmente de forma plena, por:
Inimputabilidade (menores de idade, portadores de transtornos mentais, embriaguez completa involuntária).
Coação moral irresistível (pressão psicológica com ameaça grave e verossímil).
Erro de proibição inevitável (ignorância insuperável sobre a ilicitude da conduta).
Obediência cega em estruturas de poder rígidas (especialmente em contextos militares ou criminosos organizados).
Documentos típicos
Laudos periciais psiquiátricos ou neurológicos.
Atestados de idade ou documentos civis.
Provas testemunhais e técnicas que demonstrem a ausência de dolo, de liberdade ou de discernimento.
Estratégia de Defesa
A defesa deve concentrar-se em desconstituir o vínculo de dominação, provando que:
O executor tinha plena capacidade penal e agiu com autonomia.
O acusado não exercia qualquer poder sobre o executor.
Não havia vínculo hierárquico, afetivo ou psicológico que pudesse configurar instrumentalização.
Além disso, a defesa pode argumentar que o caso é de coautoria ou mera participação, afastando assim a responsabilidade como autor pleno.
Cautela na Aplicação: Riscos de Condenação Indevida
A jurisprudência é firme ao alertar que imputar autoria mediata sem provas robustas pode gerar condenações injustas, ferindo o princípio da culpabilidade e da legalidade.
Portanto, é fundamental que o julgador:
Distinga com clareza autoria mediata de coautoria e participação.
Avalie o grau de autonomia do executor.
Considere o nível de ingerência do suposto autor mediato sobre a execução.
⚖️ A autoria mediata, quando corretamente aplicada, fortalece o sistema penal ao atingir os verdadeiros responsáveis por crimes cometidos por meio de manipulação ou comando oculto.
No entanto, se mal interpretada, pode transformar líderes legítimos, profissionais e superiores hierárquicos em réus indevidamente.
Conclusão
A autoria mediata no Direito Penal representa um avanço na teoria da imputação penal, permitindo a responsabilização de quem domina o crime sem executá-lo fisicamente. Fundamentada na teoria do domínio do fato, ela oferece uma leitura mais justa das estruturas de poder e das manipulações possíveis no crime.
Por meio do uso de inimputáveis, coação moral irresistível ou ordens hierárquicas, o autor mediato consegue realizar o tipo penal sem se expor diretamente — e por isso, sua punição é indispensável para garantir a efetividade e equidade do sistema de justiça penal.
A correta aplicação desse conceito, no entanto, exige rigor técnico, provas consistentes e respeito à legalidade e ao contraditório. O debate em torno da autoria mediata continuará sendo um dos mais desafiadores e instigantes do Direito Penal contemporâneo.
Referências Bibliográficas
BITTENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal – Parte Geral. Vol. 1. 29ª ed. São Paulo: Saraiva Jur, 2023.
MASSON, Cleber. Direito Penal – Parte Geral. Vol. 1. 19ª ed. São Paulo: Método, 2025.
CUNHA, Rogério Sanches. Manual de Direito Penal – Volume Único. 14ª ed. Salvador: JusPodivm, 2025.
Código Penal Brasileiro (Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940).
WELZEL, Hans. Derecho Penal Alemán. Madrid: Ediciones Jurídicas Europa-América, 1976.
Jurisprudência do STJ e STF, disponíveis em seus sites oficiais.