O que você verá neste post
Você sabe o que define, em termos jurídicos, quem é o verdadeiro autor de um crime? Em casos com múltiplos envolvidos, identificar quem executou diretamente o delito é essencial para aplicar corretamente a lei penal. É aqui que entra o conceito de autoria imediata no Direito Penal — um dos pilares na responsabilização individual dos agentes em um crime.
Neste artigo, vamos aprofundar esse instituto jurídico, abordando seu conceito, requisitos, exemplos clássicos e implicações práticas, com base na doutrina majoritária e na jurisprudência brasileira.
O que é Autoria Imediata no Direito Penal
A autoria imediata é a forma clássica de autoria penal. Ela se caracteriza quando o agente executa, por si só, todos os elementos do tipo penal, ou seja, pratica diretamente a conduta descrita no núcleo do tipo — o verbo principal da infração penal (como “matar”, “subtrair”, “estuprar”).
A previsão legal da coautoria e participação encontra-se no artigo 29 do Código Penal, que afirma:
“Quem, de qualquer modo, concorre para o crime, incide nas penas a este cominadas, na medida de sua culpabilidade.”
Na autoria imediata, no entanto, há uma ação autônoma e direta do agente, que detém domínio integral da conduta típica, sendo por isso responsabilizado como autor do crime, e não como partícipe ou coautor.
Fundamentos Legais e Doutrinários
A autoria imediata no Direito Penal encontra respaldo inicial no artigo 29 do Código Penal Brasileiro, que trata do concurso de pessoas. A norma dispõe que todos os que concorrem para a prática do crime respondem pelas penas cominadas, “na medida da culpabilidade de cada um”. Isso já evidencia a preocupação do legislador em individualizar a conduta penalmente relevante.
Contudo, o artigo 29 não diferencia autor de partícipe, nem classifica os tipos de autoria. Essa lacuna é suprida pela doutrina penal, que se dedica a construir critérios técnicos para essa distinção.
Nesse contexto, surgem diversas teorias, sendo a mais amplamente aceita a teoria do domínio do fato, formulada por Hans Welzel e consolidada no Brasil por autores como Cezar Bittencourt, Cleber Masson e Rogério Sanches Cunha.
Cezar Bittencourt
Para Bittencourt, o autor imediato é “aquele que pratica pessoalmente o núcleo do tipo penal, com plena consciência e vontade de alcançar o resultado”. Em outras palavras, trata-se do agente que realiza por si só a ação prevista no tipo penal, sem depender de comandos externos ou ações paralelas.
Cleber Masson
Masson contribui ao destacar que o autor imediato não atua de forma subsidiária ou acessória — sua conduta, por si só, é suficiente para consumar o delito. Isso significa que ele não apenas participa da execução, mas centraliza em si o poder de decisão sobre o crime, mesmo que, por vezes, haja auxílio material de outros.
Rogério Sanches Cunha
Para Cunha, a autoria imediata deve ser interpretada de forma restritiva, sendo atribuída apenas àquele que realiza diretamente a conduta típica descrita pela norma penal. Ele ressalta que, para efeitos práticos e processuais, essa forma de autoria facilita a identificação do responsável direto pelo resultado jurídico da infração penal.
Assim, a doutrina brasileira converge no entendimento de que a autoria imediata implica o domínio completo da ação típica, tanto do ponto de vista fático quanto jurídico, estabelecendo o agente como protagonista isolado da conduta criminosa.
Requisitos da Autoria Imediata
A correta identificação da autoria imediata exige uma análise criteriosa de elementos objetivos, subjetivos e do domínio da ação, os quais delimitam com precisão o papel do agente no contexto da infração penal.
Requisitos Objetivos
Estes dizem respeito à dimensão externa da conduta, ou seja, ao comportamento observável do agente.
Execução direta da conduta típica: O agente deve praticar, com suas próprias ações, o verbo nuclear do tipo penal. Se a infração for “matar alguém”, por exemplo, o autor imediato será aquele que efetivamente executa o ato que causa a morte.
Ação individualizada, sem intermediação: Não pode haver uso de terceiros ou instrumentos humanos como mediadores. O autor imediato age por si só, realizando o crime diretamente, sem se esconder atrás da vontade ou da ação de outrem.
Essa característica objetiva reforça a natureza autônoma da autoria imediata: não há dependência de contribuição externa ou de divisão de tarefas. O agente centraliza a ação e sua conduta é suficiente para a configuração do crime.
Requisitos Subjetivos
Dizem respeito à dimensão interna, ou seja, ao estado psicológico do agente no momento da infração.
Dolo
A autoria imediata, por definição, exige intenção de realizar o tipo penal. Não é possível reconhecer essa modalidade em crimes culposos, pois nestes o agente não busca o resultado criminoso, mas o causa por negligência, imprudência ou imperícia.
Consciência da ilicitude
O agente deve saber que sua conduta é proibida. Em situações de erro de proibição inevitável, essa consciência é afastada, podendo comprometer a imputação penal. Ainda assim, na prática, o autor imediato costuma ter plena ciência do caráter ilícito do que faz.
Esses elementos subjetivos garantem que a conduta do agente possa ser moral e juridicamente censurada, legitimando sua responsabilização penal.
Domínio do Fato
O elemento integrador da autoria imediata é o chamado domínio do fato típico, que pode ser compreendido como:
1. Controle efetivo sobre a realização do crime
O autor tem a capacidade de iniciar, conduzir e interromper a execução do delito. Ele detém o poder de decisão sobre a consumação da infração penal.
2. Capacidade de alterar o curso da ação criminosa
Se o agente pode modificar os meios empregados, redirecionar a ação ou evitar o resultado, isso demonstra que ele detém o controle funcional do delito, confirmando sua posição como autor imediato.
O domínio do fato é, portanto, o critério mais aceito na doutrina penal contemporânea para diferenciar autores de partícipes e identificar a verdadeira autoria.
Exemplos Clássicos de Autoria Imediata
A aplicação do conceito de autoria imediata no Direito Penal torna-se mais evidente por meio da análise de casos práticos e situações concretas. Nessas hipóteses, é possível identificar com clareza o agente que realiza pessoalmente a conduta típica e detém o controle da ação.
Homicídio Doloso
O exemplo mais comum é o do indivíduo que, com intenção de matar, atira contra a vítima e provoca sua morte. Nesse caso, ele executa diretamente o verbo típico “matar”. Não há intermediários nem divisão de tarefas: o domínio do fato está integralmente nas mãos do autor, que é o executor material do resultado letal.
Furto
No crime de furto, temos a figura do agente que invade um domicílio e subtrai, com dolo, um bem móvel alheio. Ele pratica os verbos típicos “subtrair coisa alheia móvel”, definidos no art. 155 do Código Penal. A ação é exclusiva, pessoal e autônoma, demonstrando claramente a autoria imediata.
Estupro
Nos crimes contra a dignidade sexual, como o estupro (art. 213 do CP), o autor imediato é quem realiza o ato sexual mediante violência ou grave ameaça. Ele pratica, diretamente, o núcleo da conduta típica, sendo, portanto, o responsável direto e único pela agressão sexual.
Crimes Ambientais
Em infrações ambientais, a autoria imediata também pode ser verificada. Um exemplo seria o pescador que, de forma deliberada, lança substâncias tóxicas em um rio para matar os peixes e facilitar a coleta posterior. A conduta típica do art. 54 da Lei nº 9.605/1998 é diretamente executada pelo agente, sem intermediação ou instigação de terceiros.
Crimes Patrimoniais com Ação Isolada
Imagine um caso em que uma pessoa frauda documentos e apresenta pessoalmente esses documentos falsos em uma instituição bancária para obter empréstimo.
Mesmo que haja outras pessoas envolvidas nos bastidores, se o agente realiza a ação típica de uso de documento falso, ele será considerado autor imediato em relação à falsidade.
Em todas essas hipóteses, observa-se que o agente atua de forma independente e autônoma, assumindo a execução da infração penal de maneira direta, consciente e voluntária.
Portanto, essa centralidade da ação é o que distingue, de forma clara, o autor imediato no contexto do concurso de pessoas.
Autoria Imediata vs. Outras Formas de Autoria
Compreender a autoria imediata requer diferenciá-la de outras figuras de responsabilidade penal previstas no ordenamento jurídico, principalmente a autoria mediata e a autoria colateral.
Embora todas envolvam a prática de delitos com múltiplos agentes, os critérios de imputação penal são distintos.
Autoria Mediata
Na autoria mediata, o agente não executa pessoalmente o núcleo do tipo penal, mas utiliza outra pessoa como instrumento da conduta criminosa. Essa pessoa intermediária costuma estar em situação de vulnerabilidade ou de inimputabilidade, sendo manipulada por quem detém o verdadeiro domínio do fato.
Exemplo: Um adulto convence um menor de 13 anos a realizar um roubo. Embora o menor execute o ato físico (invadir e subtrair o bem), a responsabilidade penal recai sobre o adulto, pois ele instrumentalizou alguém incapaz de responder penalmente. Nesse caso, o adulto é o autor mediato do crime, e o menor é mero instrumento humano.
Outros casos típicos:
Médico que força um enfermeiro a aplicar substância letal, sob ameaça grave.
Líder de seita que manipula fiel a cometer crime acreditando ser “ordem divina”.
Em todos os casos, o autor mediato domina a vontade alheia, o que o distingue do autor imediato, que realiza ele próprio a ação típica.
Autoria Colateral (ou Paralela)
A autoria colateral ocorre quando dois ou mais agentes agem de forma simultânea, com a intenção de cometer o mesmo crime, mas sem qualquer vínculo subjetivo ou acordo prévio.
Ou seja, há pluralidade de ações autônomas, que por coincidência convergem para o mesmo resultado, sem cooperação entre os envolvidos.
Exemplo: Dois indivíduos, sem se conhecerem, disparam contra a mesma vítima em um ambiente tumultuado (como em um tiroteio entre facções). Ambos têm dolo homicida, mas não agem em coautoria nem com vínculo subjetivo.
Se apenas um disparo for fatal e não se puder identificar o responsável, ambos podem responder por tentativa de homicídio, com base no princípio do in dubio pro reo.
Comparação Final
Modalidade | Agente realiza a conduta típica? | Há intermediação? | Domínio do fato? | Exemplo típico |
---|---|---|---|---|
Autoria Imediata | Sim | Não | Sim | Pessoa que comete o furto sozinha |
Autoria Mediata | Não | Sim | Sim | Uso de inimputável para matar |
Autoria Colateral | Sim | Não | Parcial/Não | Tiros simultâneos sem combinação |
Autoria Imediata na Jurisprudência
A aplicação prática da autoria imediata é amplamente discutida nos tribunais superiores, especialmente em casos que envolvem crimes dolosos contra a vida.
Os julgados do STJ (Superior Tribunal de Justiça) demonstram como a correta identificação da autoria direta influencia não apenas a responsabilização penal, mas também aspectos processuais relevantes, como a formulação dos quesitos no Tribunal do Júri e a validade da denúncia.
A seguir, apresentam-se precedentes que ilustram diferentes situações envolvendo a autoria imediata:
1. AgRg no HC 820299/ES – Princípio da correlação e autoria direta
O STJ anulou o julgamento do júri por desconformidade entre a denúncia, que atribuía ao réu a autoria direta dos disparos, e o quesito formulado, que indagava genericamente sobre a contribuição para o crime.
A Corte entendeu que a imputação de autoria imediata exige correspondência exata na quesitação, sob pena de nulidade absoluta, por violação ao contraditório e à ampla defesa.
2. HC 93860/RJ – Inepcia da denúncia por ausência de descrição da autoria direta
Neste habeas corpus, a denúncia foi considerada inepta por não indicar de forma clara quem praticou o fato típico nem os meios utilizados. A decisão reforçou que, em acusações envolvendo autoria imediata, é indispensável a descrição específica da conduta do agente, sob pena de violação ao devido processo legal e à ampla defesa.
3. HC 99144/RJ – Elementares do tipo e extensão da autoria direta
No julgamento de homicídio mediante paga, o STJ reafirmou que a qualificadora da promessa de recompensa se comunica ao autor direto e ao mandante.
Assim, mesmo quem realiza diretamente o núcleo da ação típica pode ser alcançado por circunstâncias qualificadoras vinculadas à motivação do crime.
4. HC 16242/RJ – Autoria imediata versus autoria intelectual
Neste caso, o réu havia sido absolvido em processo anterior como autor material (autoria imediata) de um crime de homicídio. Posteriormente, o Ministério Público ofereceu nova denúncia, imputando-lhe a condição de mandante (autoria intelectual).
O STJ concluiu que, por se tratar dos mesmos fatos e já haver sentença absolutória com trânsito em julgado, a nova ação penal era indevida, mesmo sob nova roupagem acusatória.
5. RHC 5459/SP – Suficiência da prova para imputação de autoria imediata
Neste recurso, o STJ entendeu que, para fins de oferecimento de denúncia com imputação de autoria imediata, basta a existência de indícios mínimos da conduta direta do agente.
A decisão destacou que a identificação da autoria imediata pode se basear em elementos extraídos do inquérito, sendo desnecessária prova plena na fase pré-processual.
Implicações Práticas para o Processo Penal
A identificação da autoria imediata impacta profundamente a dinâmica processual penal, influenciando desde a fase de investigação até a sentença. Quando bem delimitada, ela assegura uma persecução penal mais justa, técnica e eficiente, pautada pela individualização das condutas.
Individualização da Pena
A responsabilização penal no concurso de pessoas deve observar o princípio da culpabilidade e a conduta pessoal do agente. A autoria imediata exige que a pena seja calculada:
Exclusivamente com base nas ações do executor direto, sem levar em conta eventual coautoria ou participação de terceiros.
Impedindo que o réu seja penalizado em razão de atos de outros agentes, especialmente quando não há vínculo subjetivo ou divisão de tarefas.
Exemplo: um indivíduo que furta sozinho um celular em via pública deve responder única e exclusivamente por sua ação, não podendo ser punido mais severamente por causa da atuação de um grupo criminoso do qual não faça parte.
Prova Técnica e Testemunhal
No processo penal, a carga probatória da acusação se torna mais exigente quando se pleiteia o reconhecimento da autoria imediata. Isso porque:
É necessário demonstrar, de forma clara e individualizada, que o réu praticou pessoalmente o núcleo do tipo penal.
Provas indiretas, genéricas ou meramente circunstanciais não são suficientes para justificar a condenação como autor imediato.
A ausência de provas contundentes pode resultar:
Na desclassificação da imputação penal (de autoria para participação).
Ou mesmo na absolvição por ausência de prova quanto à autoria, conforme o artigo 386, inciso VII, do Código de Processo Penal.
Dica prática: elementos como filmagens, perícias, laudos e testemunhos convergentes são fundamentais para a sustentação da acusação em casos de autoria imediata.
Estratégia Defensiva
A defesa, por sua vez, pode se beneficiar significativamente ao demonstrar que:
O réu não detinha o domínio do fato.
Ou que não executou pessoalmente a conduta típica, atuando, quando muito, como partícipe ou sequer tendo envolvimento real.
Além disso, a análise minuciosa do contexto probatório, em conjunto com o princípio do in dubio pro reo, pode levar:
À desclassificação da autoria para participação.
Ou à absolvição por ausência de autoria, caso não se consiga comprovar que o réu praticou a ação típica.
Ferramenta essencial: o exame técnico-pericial (como balística, digitais, DNA ou reconstituições simuladas) é determinante para reconstruir o cenário do crime e esclarecer a atuação efetiva do acusado.
Essas implicações demonstram como a autoria imediata não é apenas uma categoria doutrinária, mas uma ferramenta fundamental para garantir que o processo penal seja preciso, equilibrado e juridicamente adequado.
Assim, o reconhecimento (ou afastamento) da autoria imediata influencia diretamente:
A estrutura da denúncia.
A condução da instrução processual.
E a dosimetria da pena na sentença.
Vídeo: Concurso de Pessoas no Direito Penal
O vídeo apresenta uma análise didática sobre o concurso de pessoas no Direito Penal, abordando as diferentes formas de autoria e participação.
Conclusão
A autoria imediata no Direito Penal é um conceito essencial para o correto funcionamento do sistema de justiça criminal. Identificar o executor direto do crime, com base na ação típica e no domínio do fato, garante que a responsabilização seja justa, proporcional e alinhada ao princípio da legalidade.
Ao longo deste artigo, analisamos os fundamentos doutrinários, os requisitos legais, os principais exemplos e a relevância prática desse instituto. Compreender a autoria imediata é passo indispensável para qualquer profissional ou estudante do Direito que deseja atuar de forma ética e técnica no campo penal.
Aprofunde-se, estude casos práticos e mantenha-se atualizado com a doutrina e jurisprudência: é assim que se constrói uma base sólida na ciência penal.
Referências Bibliográficas
- BITTENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal – Parte Geral. Vol. 1. 29ª ed. São Paulo: Saraiva Jur, 2023.
- MASSON, Cleber. Direito Penal – Parte Geral. Vol. 1. 19ª ed. São Paulo: Método, 2025.
- CUNHA, Rogério Sanches. Manual de Direito Penal – Volume Único. 14ª ed. Salvador: JusPodivm, 2025.
- Código Penal Brasileiro (Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940).
- Jurisprudência do STJ e STF, disponíveis no Jusbrasil e sites oficiais.